Introdução

Cocriar em uma comunidade de aprendizagem ágil e autodirigida, híbrida, multigeracional e diversa tem sido uma experiência extremamente enriquecedora, pela qualidade das interações e pelas aprendizagens fora dos padrões de leitura/escrita e colonização de pensamento em que podemos ter acesso a discursos, visões e linguagens que realmente prezam pela investigação e compreensão profunda e genuína sobre os valores e princípios que estão em jogo quando estamos em relação e principalmente que contemplam a singularidade de cada ser em seu desenvolvimento autodirigido diante da vida.

Muitos assuntos têm sido investigados/explorados dentro do princípio da autodireção que para além de visitar autores e referências importantes sobre os mais variados temas, primordialmente visam ouvir e dialogar com e sobre pessoas reais vivendo situações cotidianas e a maneira como na prática esses conceitos e teorias fazem ou não sentido, comprovando ou descartando o que as referências e médicos apontam como o necessário. Ou seja, ter autodireção para decidir qual médico ou qual conceito e visão desejo seguir, procurar outras opiniões médicas e de outras áreas terapêuticas, se juntar a comunidades de pessoas que vivem e já viveram uma jornada investigativa e estão encontrando formas de lidar com a vida e com suas diversidades que sejam mais leves, que proporcionem um viver mais fluído, prazeroso e saudável.

O presente texto vem trazer uma pesquisa autodirigida que está sendo desenvolvida em comunidade no ALC Nature e consiste em um apanhado de ideias, diálogos, conceitos e materiais que foram criados dentro do ALC Nature, mas também com o apoio de referências externas e materiais da rede internacional. Ao final do texto você poderá encontrar todas as referências que foram utilizadas para compor este texto e para que possam aprofundar ainda mais e fazer o seu próprio filtro do que compõe ou não para a sua trajetória como aprendiz, como mãe, pai, facilitador, facilitadora ou parente/familiar, amigue de pessoas neurodiversas.

Por fim, para ilustrar o texto fui buscar imagens que representam a neurodiversidade, TEA e TDAH e tive uma surpresa muito gratificante com as cores e símbolos que representam estes transtornos pois apesar de ser simpatizante do tema eu nunca havia escrito nada sobre isto e nem conhecia todos os símbolos.

Gostaria de deixar explícito meu ponto de vista como pesquisadora autodirigida. Sou educadora e psicopedagoga como formação acadêmica e nos últimos 6 anos trabalho diretamente com famílias, crianças e pessoas autodirigidas como mentora e facilitadora de aprendizagem ágil. Não sou especialista no tema da Neurodiversidade, mas o assunto me encanta há muitos anos e busco aprender e aprimorar minhas práticas porque estou cada vez mais convicta que quanto mais eu compreendo sobre neurodiversidade, mais eu aprendo a me relacionar com todos os tipos de pessoas.

Existem pessoas na nossa comunidade mais competentes para falar sobre isto, como a Gabriela Carletto, que é membra ativa na comunidade e têm ajudado a construir novas visões e aprofundamentos sobre o tema por ser mãe de autista e ter descoberto seu próprio diagnóstico como mulher autista depois de adulta. O Instituto Pratyahara fundado por Gabriela têm sido parceiro do ALC Nature em nossas ações. Nas referências disponibilizamos a gravação de um encontro em nossa comunidade de aprendizagem com ela apresentando o tema. Boa parte do que eu trouxe no presente texto foi inspirado nas trocas e aprendizagens com a Gabriela e também inspirada no trabalho de Crystal Byrd Farmer que é membra da rede ALC global e fundadora de um ALC voltado para atender crianças e adolescentes neurodiversos nos EUA.

Sobre a Neurodiversidade

A primeira coisa que a abordagem da neurodiversidade nos traz é a “diversidade”. Como podemos conceber a diversidade humana nas nossas relações e práticas educativas e principalmente como a Educação pode servir de apoio para todas as diversidades?

Porque afinal de contas cada pessoa aprende de uma maneira. Podemos dizer que existem tantas maneiras e possibilidades de aprendizado quanto existem pessoas no mundo. O que a autodireção e a aprendizagem ágil dentro dos ALCs vem desconstruir é justamente a priorização de um único saber como considerado de valor: que é a linguagem escrita, branca, européia, acadêmica, hetero masculina, colonizadora. Não existe só uma forma de saber, existe uma diversidade de conhecimentos e práticas humanas que estão simplesmente sendo deixadas de lado por conta dessa padronização de saberes, de visão de mundo e de abordagens educativas. Essa padronização não é aleatória e não acontece de maneira inocente, existe um propósito por trás do sistema de escolarização.

O termo Neurodiversidade foi criado pela socióloga australiana Judy Singer em 1988. Judy está no espectro de Asperger e sua mãe e filha são autistas. Sob esta terminologia o mais importante que precisamos ressaltar é que a neurodiversidade não é uma doença, mas sim, uma forma peculiar de funcionamento cerebral de alguns indivíduos e mesmo dentro desta abordagem as pessoas neurodiversas têm as suas múltiplas formas individuais de comportamento, aprendizagem e relação com o mundo e está bem!

O grande desafio que vivemos é esta tentativa desenfreada do sistema escolar e da sociedade em enquadrar as pessoas ao que é esperado delas. Sendo muito direta, a intenção maior de enquadramento é a adequação ao mercado de trabalho para gerar lucro. Pessoas que têm outro tempo de aprendizagem, outras necessidades de desenvolvimento e outros focos para além das necessidades do mercado de trabalho costumam ser pressionadas para se enquadrar ao sistema vigente. O enquadramento significa forçar a natureza daquele Ser a se espremer e ajustar seu comportamento às normas sociais, muitas vezes através de medicações e posicionamentos abusivos e impositivos.

Todes nós fomos e estamos sujeitos a este tipo de compulsoriedade, porém os neurodiversos são mais sensíveis a serem subjugados, oprimidos e obrigados a cumprir ordens e eles entram em colapso, seu sistema de funcionamento dá pane, não adianta querer forçar as coisas se não fizer parte do fluxo natural de desenvolvimento necessário para aquela pessoa, naquele momento; e não seria isto uma bela virtude?

Através da visão da autodireção vamos inverter a lógica de raciocínio e compreender como na verdade compreender as pessoas neurodivergentes e buscar se aproximar um pouco mais do entendimento de suas necessidades pode contribuir para potencializar a comunicação e a qualidade da aprendizagem de todas as pessoas.

No presente texto foquei em TEA e TDAH, porém existem outros transtornos e grupos que poderiam também ser identificados como neurodivergentes como: discalculia, dislexia, disgrafia, síndrome de Tourette e outras que afetem o funcionamento neuropsíquico com suas infinitas possibilidades e variáveis combinatórias.

TEA

Vamos falar um pouco, bem superficialmente, sobre as pessoas que fazem parte do transtorno do espectro autista (TEA) e alguns pontos básicos mas importantes de se compreender com a intenção de quebrar alguns mitos e aproximar as pessoas de um entendimento mais abrangente, mesmo para quem ainda não tem ou não teve contato com uma pessoa autista.

O TEA é um transtorno que afeta habilidades de linguagem, comportamento, interações sociais e aprendizagem. Não havendo uma regra única para como as combinações e formas e níveis de comprometimento dessas áreas, cada pessoa autista vai ter em sua percepção e relação com o mundo.

Os sintomas mais comuns são: dificuldades nas interações sociais, comunicação e comportamentos repetitivos. Costuma prezar pela ordem e repetição e são resistentes com as mudanças de rotina.

Precisamos levar em consideração 3 componentes do autismo: sensibilidade sensorial, comunicação e comportamentos que vou explicar brevemente abaixo.

Sensibilidade:

  • Podem ser muito ou pouco sensíveis em relação, ao tato, som e percepção do ambiente
  • Texturas de alimentos

Neste sentido o que podemos trazer sobre esta sensibilidade e como conviver com uma pessoa autista considerando suas sensibilidades. Primeiramente através da convivência, observação e diálogo. Podemos perceber qual a hipersensibilidade daquela pessoa, pode ser aos ruídos, à organização e mudança de coisas no espaço, que tipo de alimentos e situações são desagradáveis e que tipo de situações deixam essa pessoa mais tranquila e acolhida. Por exemplo: se uma pessoa tem grande sensibilidade ao toque, ela não precisa ser obrigada a participar de atividades que obriguem-na a vivenciar o toque, ou deve ter seu espaço corporal respeitado se não gosta de abraços e beijos e a expansão dessa condição pode ser experimentada através da confiança e da relação respeitosa mas também na aceitação e respeito das pessoas que convivem com ela sobre os seus limites sem que se torne preciso forçar essa pessoa a agir como a maioria das pessoas age porque é conveniente.

Comunicação:

  • Podem ter desafios com a comunicação verbal/não verbal
  • Dificuldade em perceber expressões, gestos, coisas subentendidas

Pessoas autistas são literais, algumas vezes podem até parecer ríspidas por se esquecerem de algumas formalidades como bom dia, por favor, obrigado, com licença. Neste caso não é apenas falta de educação, pode ser apenas uma maneira direta de se comunicar e ir direto ao ponto. Outra questão é em relação aos comandos verbais, para compreender uma sentença precisam de uma comunicação direta, objetiva e explícita.

Nos ALCs um dos nossos valores é a transparência na comunicação. Ninguém é obrigado a adivinhar o que está por trás do que estamos querendo dizer, quanto mais objetiva e explícita, melhor se dá a comunicação. Embora seja uma atenção a mais na forma como nos comunicamos com pessoas neurodiversas, aprimorar a nossa comunicação vai trazer resultados favoráveis na relação com todas as pessoas.

Comportamento:

  • Podem ter comportamentos repetitivos e/ou restritos/restritivos

A maior parte das visões que tratam do assunto trazem essa necessidade de enquadramento das pessoas ao “modus operandi”. Uma abordagem diferenciada em relação aos movimentos repetitivos e comportamentos metódicos é que estes comportamentos e gestos são importantes para a equilibração interna dessas pessoas. Se os movimentos e comportamentos não prejudicam a própria pessoa e nem às outras ao redor, por que razão propriamente queremos impedí-los de se mover e agir como se sentem mais confortáveis?

MITOS:

  • Pessoas autistas não interagem com o mundo

As pessoas autistas interagem sim com o mundo, mas o percebem, se comunicam e se expressam de uma maneira autêntica, peculiar.

  • Pessoas autistas não demonstram interesse pelas coisas, são apáticas

As pessoas autistas, mesmo as crianças autistas têm clareza do que gostam ou não gostam, apenas precisamos aprender a perceber de que maneiras manifestam seus interesses.

DESAFIOS:

Existem diferentes níveis de autismo dentro do espectro, existem pessoas com mais comprometimento e que precisam de mais suporte, no entanto, existem muitas pessoas com diagnóstico de autismo que demoram para descobrir o diagnóstico por terem graus mais moderados de autismo o que se torna um desafio para a sua convivência no mundo pois as pessoas podem dizer: “mas nem parece autista” e continuar agindo como se aquela pessoa não fosse neurodiversa. Sempre na tentativa de enquadramento ao mundo mas também sendo resistente a compreender às diversidades existentes. Isso é real e acontece todos os dias na vida de pessoas autistas.

TDAH

O transtorno de déficit de atenção e hiperatividade é um transtorno em que algumas características podem ser confundidas com características das pessoas autistas e também se enquadra no guarda-chuva do que Judy Singer considera como neurodiversidade. Algumas vezes o TEA e o TDAH podem aparecer associados, algumas vezes não.

Os sintomas mais comuns são: desatenção, hiperatividade, impulsividade. O que faz com que a pessoa consiga ficar apenas pouco tempo fazendo alguma atividade ou que se canse rapidamente de atividades que exigem repetição. Também podem desenvolver hiper foco quando a atividade é do seu interesse.

Muitas vezes o desafio para a pessoa TDAH é desenvolver a autopercepção, neste caso o papel de facilitadora na relação com pessoas com TDAH consiste em sinalizar para a aprendiz sobre autorregulação e autopercepção. “Estou percebendo que você está um pouco agitada, quer sair para dar uma volta? Você está com lágrimas nos olhos, quer falar sobre isto?”

Diagnóstico

Por que diagnosticar?

Para muitas pessoas o diagnóstico é uma libertação, existem pessoas que vivem muitos anos se sentindo desencontradas e cheias de desafios diante da vida e das relações e o diagnóstico se torna uma informação que amplia a visão de mundo e principalmente proporciona um viver mais pleno, com menos sofrimento e buscando estratégias, ferramentas e profissionais para apoiar adequadamente.

O diagnóstico deve ser buscado e considerado somente se for para trazer mais conforto e o apoio necessário para a pessoa aprendiz ir além. O diagnóstico não é e não pode ser um carimbo na testa, mas sim uma digital no dedo em que a pessoa consegue se compreender melhor e as suas relações com o mundo.

Considerações autodirigidas

Se estamos partindo do princípio que a neurodiversidade não é doença, não há cura e nem a necessidade de medicalização para tratamento. Porém outras terapias e apoio profissional podem ser importantes. Qual a necessidade de apoio de cada aprendiz? Qual apoio está sendo feito? Qual apoio eu posso oferecer neste momento e qual não posso ? Onde buscar apoio para o que eu não posso oferecer?

O que a escolarização propõe é um enquadramento e abafamento das necessidades físicas gritantes, considerando que as pessoas neurodiversas precisam se comportar igualmente todas as outras pessoas, neste caso, se a única opção for a adequação, será necessário impor e medicalizar, o que no fim torna a pessoa neurodiversa mais aprisionada e subjugada em suas capacidades. No entanto se o papel da Educação é contribuir para o desenvolvimento das potências de cada pessoa, precisamos olhar para o que há de potência e não para o que lhes falta, para as habilidades menos eficientes que possuem. Quais as habilidades cada pessoa sendo neurodiversa ou não tem potencial para desenvolver? Todas as pessoas têm potencial para alguma coisa, isso é certo! Nem sempre o potencial atende às expectativas deste mundo padronizado. Podemos citar aqui a Teoria das Inteligências múltiplas de Howard Gardner como inspiração.

Um outro aspecto relevante é que numa perspectiva da aprendizagem autodirigida com o apoio de ferramentas que temos nos ALCs sempre há espaço para tratar das emoções onde cada pessoa pode se expressar livremente sem se sentir ameaçada, incorreta e insegura diante das pessoas de sua comunidade. Através de um espaço seguro de partilha em que todas as pessoas se sentem seguras de si e autoconfiantes para se expressar à sua maneira, as necessidades específicas de cada pessoa da comunidade vão sendo compartilhadas e o coletivo vai junto encontrando uma maneira de harmonizar as necessidades. Cada comunidade tem seu fluxo de funcionamento, cada grupo tem uma química que é criada especificamente a partir do campo daquelas pessoas que estão ali.

Apesar de termos momentos importantes de encontros e reuniões, nada é obrigatório, tudo é um convite, a pessoa não precisa se adequar, mas a comunidade pode ir adequando as práticas, cultura e ferramentas à realidade e necessidade das pessoas aprendizes daquela comunidade.

Outro aspecto primordial é a sensação positiva de pertencimento que se sente ao estar numa comunidade de aprendizagem onde a base é a confiança e a expressão autêntica. Na perspectiva dos ALCs, temos micro comunidades, em que as famílias são co-responsáveis entre si e junto aos facilitadores e facilitadoras, pela constante reflexão e busca de superação das crenças escolarizantes limitadoras que nos constituem. Depois igualmente importante, refletem e compartilham práticas sobre como educar as crianças num ambiente anti-opressão e em prol da vivência coletiva compartilhada. Quais práticas e qual cultura estamos sustentando para que essas crianças possam se desenvolver da melhor maneira possível?

Palavras finais

Não é fácil educar uma criança neurodiversa, não é fácil tratar da educação e preparação de novos seres para viver no mundo, ainda mais neste momento de transição tão profundo que estamos passando na Terra. No entanto devemos levar em conta que a perfeição humana é justamente o fato de cada um ser exatamente como é, sem precisar parecer ou atender à expectativas alheias, sem se enquadrar em personagens e padrões de comportamento.

Nós, pessoas adultas, é que devemos fazer o trabalho interior e mudar a maneira como nos relacionamos com as crianças. Nossa educação escolarizada do século passado nos leva a confundir educação com escolarização e a escolarização visa encaixotar as crianças, padronizar e preparar para um mundo que não faz mais sentido sustentar.

É preciso ter coragem para fazer diferente! Mas não estamos sozinhos! Estamos em rede, estamos sustentando essa transformação e estamos aqui para falar sobre autodireção e principalmente viver estes valores e compartilhar com cada vez mais pessoas e contribuir com o desenvolvimento de seres plenos, íntegros e autodirigidos.

Referências:

Instituto Pratyahara

Crystal Byrd Farmer

Podcast Radical Learning — Episódio com Crystal Byrd

Gravação — Neurodiversidade com Gabriela Carletto no ALC Nature

Power Point — apresentação

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