Como aprender sobre regras e limites na perspectiva da livre aprendizagem?

Ao morar com famílias que escolheram tirar seus filhos da escola (em 2019 no Pará e agora em Minas Gerais), me dei conta que essa era uma grande curiosidade, porque eu pensava que seriam crianças orientadas unicamente pelos seus desejos, que faziam o que queriam como tiranos, ou que não conheciam ou não se importavam com a moral, ética e valores comuns. Estes estereótipos fazem parte de construções que circulam no nosso imaginário, alimentadas pelo desconhecimento e poucas referências que temos (recomendo o documentário brasileiro “Fluir, o devir da autopoiese”). O paradigma do limite (MONRAT, 2018) nos faz acreditar que sem escola, crianças e jovens crescerão presumindo que regras não são necessárias e tudo está ao seu alcance, já que com a autorização das famílias têm suas vontades realizadas. É irônica essa preocupação que escolhe não enxergar como a escola reproduz e produz essa perspectiva: ou por acaso pessoas brancas saem da escola com letramento racial crítico, conscientes que o currículo oficial e oculto é construído a partir e para brancos? Desde quando as escolas rompem com estruturas centradas nos homens e masculinidades? Como é de se imaginar, não encontrei déspotas ou vândalos sociais, mas crianças e jovens que entendiam o significado do “não” (mais do que muito homem hétero por aí) e pais conscientes dos motivos dos limites. Acredito que aquele imaginário também é produzido pelo medo da autonomia: qual não seria o caos na sociedade se ninguém obedecesse?

Autonomia, segundo Paulo Freire, é o equilíbrio entre autoridade e liberdade. “Liberdade sem limite é tão negada quanto liberdade asfixiada ou castrada” (FREIRE, 1997). Eu enxergava apenas esse dualismo: de um lado a escola que converteu autoridade em autoritarismo e de outro a desescolarização, em que a liberdade se perverteria em licença. Para deixar de oscilar entre tirania da liberdade e exacerbamento da autoridade, devemos ir no sentido da autonomia. Por ser um termo em disputa, valorizado mas esvaziado de sentido, me pauto na definição de Kant de que a autonomia é a independência da vontade em relação ao desejo ou objeto de desejo e capacidade de determinar-se em conformidade com a lei própria da razão. Isso quer dizer que a autonomia é sobre escuta interna centrada no seu íntimo. Paulo Freire ressalta ainda que autonomia passa pelo reconhecimento de que somos condicionados mas não determinados. O discurso neoliberal insiste em nos convencer de que a ordem das coisas é natural, que estamos no único caminho possível e não podemos mudar. Freire, por outro lado, aposta no saber-se limitado e programado mas esperançoso pela possibilidade de “inserção numa busca permanente” (FREIRE, 1997). Ser autônomo é estar aberto ao devir.

Nesse sentido, na livre aprendizagem buscamos desenhar os limites a partir de uma perspectiva autônoma. Lesly Monrat (2018) aponta que há três tipos de limite: interno, relacional e social. O primeiro diz respeito ao eu e somente o eu pode compreender suas fronteiras. Ele nasce dentro do próprio corpo, mas pode ter agentes provocadores externos, como por exemplo o limite da paciência de cada um. O segundo é sobre aquilo que você aceita e suporta na relação com outro, que também deve ter como referência o limite interno. O que você sente ao ver uma criança rasgar seu livro ou brincar com tinta no banheiro? Esse limite é construído através de “uma visão crítica das situações vivências, num processo pessoal de sensibilidade” (p 81). O terceiro limite, da vida social, deve estar baseado na conscientização e trabalhado pelo exemplo de vida e não na base de imposição e castigo. Crianças e jovens aprenderão a proteger os bens comuns observando ações de empatia. Paulo Freire pergunta como trabalhar no sentido de fazer possível que a necessidade do limite seja eticamente pela liberdade e acredito que as respostas vão nessa direção.

Como aprender a ser autônomo e estabelecer os limites em uma comunidade de aprendizagem?

“Ninguém é autônomo primeiro para depois decidir. A autonomia vai se constituindo na experiência (…) ninguém é sujeito da autonomia de ninguém (…) A liberdade se exercita assumindo decisões” (FREIRE, 1997). No ALC Nature exercitamos a autonomia diariamente: decidimos os horários, as atividades, cardápio, a forma de resolver conflitos, o que fazer no tempo livre.. nosso cotidiano é uma oportunidade de prática da liberdade. Com o intuito de alinhar essa nossa perspectiva e firmar os limites, o primeiro passo desta comunidade de aprendizagem é rever o quadro dos acordos iniciais ao receber novos integrantes:

Acordos inicias:

— cuidar de si

— cuidar dos outros

— cuidar do espaço e materiais

— cocriar ativamente a experiência

— utilizar o ciclo ágil

> intenção >criação >reflexão >compartilhamento

Temos também os acordos complementares:

Acordos complementares:

— presença (foco e conexão com o que está acontecendo)

— atenção e cuidado nas palavras

— respeitar o consentimento/não consentimento alheio

— respeitar os papéis

Referências:

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1997.

KANT, Immanuel. Sobre a Pedagogia. Trad. de Francisco Cock Fontanella. Piracicaba: Unimep, 1996.

MONRAT, Lesly. Fluir: o devir da autopoiese. Florianópolis: Ed do Autor, 2018.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima